A tokenização do mercado de crédito

A tecnologia blockchain e a tokenização estão transformando o mercado de crédito ao trazerem maior transparência, segurança e eficiência. Uma das principais vantagens do blockchain é a imutabilidade das transações registradas, o que proporciona uma camada adicional de segurança contra fraudes e manipulações. Isso é particularmente importante no mercado de crédito, onde a confiança é fundamental. Com o uso do blockchain, todas as partes envolvidas em uma transação têm acesso a um registro único e confiável, que pode ser verificado de forma transparente. Além disso, a automação de processos por meio de contratos inteligentes reduz a necessidade de intermediários, diminuindo custos e tempo de execução das operações.

A tokenização, por sua vez, permite a representação digital de ativos financeiros, incluindo créditos, em tokens que podem ser facilmente negociados em plataformas digitais. Isso democratiza o acesso ao mercado de crédito, possibilitando que investidores de diferentes perfis possam participar e diversificar seus portfólios de forma mais acessível. Além disso, a liquidez é significativamente aumentada, já que os tokens podem ser fracionados e vendidos em pequenos lotes, facilitando a entrada e saída de investidores. A combinação do blockchain com a tokenização, portanto, não só aumenta a eficiência e segurança, como também promove uma maior inclusão financeira no mercado de crédito.

Neste sentido, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sempre esteve atenta aos avanços tecnológicos e as alterações legislativas e regulatórias relativas ao mercado financeiro global. Foi nessa marcha que editou a Instrução CVM nº 588/2017 (ICVM 588), importando dos Estados Unidos da América (EUA), mais especificamente do Jumpstart Our Business Startups Act (Jobs Act), o conceito de equity crowdfunding – tipo de financiamento coletivo, muito utilizado na captação de recursos de empresas em estado inicial (startups).

A ICVM 588 foi pioneira ao possibilitar no Brasil a oferta pública de valores mobiliários emitidos por startups de maneira simplificada e sem a pesada carga regulatória normalmente aplicável a esse tipo de operação. Isso contribuiu para o crescimento de ideias empreendedoras, ao passo que estabeleceu uma nova (e mais barata) maneira de financiamento de startups pelo mercado de capitais.

A ICVM 588 trouxe métricas expressivas ao mercado, dando segurança à CVM sobre a utilização do crowdfunding. Como consequência de seu sucesso, a CVM editou a Resolução CVM nº 88/2022 (CVM 88), expandindo o alcance da ICVM 588 e retirando algumas amarras que não mais se justificavam num mercado cada vez mais sólido.

As alterações trazidas pela CVM 88 podem ser divididas em alguns blocos principais, começando pela expansão dos limites monetários para captação (de R$ 5 milhões para R$ 15 milhões) e do capital social das empresas elegíveis para realizarem a captação via crowdfunding (de R$ 10 milhões para R$ 40 milhões).

Outra mudança importante foi a maior flexibilidade na divulgação das ofertas, permitindo o uso de canais de mídia e analistas de valores mobiliários, o que potencializou a captação de recursos, ao passo que atingiu mais investidores.

Um terceiro bloco de alterações envolve a atividade de escrituração e controle de titularidade dos valores mobiliários emitidos (artigo 12, da CVM 88). Inicialmente, a CVM trouxe a necessidade de contratação de uma escrituradora autorizada a funcionar, conforme diretrizes da Resolução CVM n.º 33/2021. Todavia, atendendo às exigências do mercado, a CVM possibilitou que as próprias plataformas realizassem esta atividade, se atendessem alguns requisitos técnicos (dispostos no artigo 12, da CVM 88).

Essa liberação, além de baratear e simplificar as operações de crowdfunding, foi utilizada como um verdadeiro sandbox regulatório para a CVM. Isso porque, muitos players passaram a ofertar os valores mobiliários de emissão das startups, via tokens, com controle de titularidade feito pela tecnologia blockchain, que atendia os requisitos técnicos mínimos impostos.

O quarto bloco diz respeito a autorização das chamadas transações subsequentes. A CVM deixou claro, todavia, que não há um mercado secundário, sendo que tal alteração veio para facilitar a saída do investidor, por meio de uma intermediação feita pela plataforma.

As alterações trazidas pela CVM 88, especialmente no tocante ao controle de titularidade via blockchain, solidificaram o mercado de crowdfunding no Brasil, permitindo que ele se expandisse para além do financiamento de participação societária (equity), alcançando a captação de dívidas.

Essa expansão se deu muito por força do mercado imobiliário, que viu no crowdfunding uma alternativa viável e muito mais barata ao financiamento de seus projetos. Por meio dessa tecnologia, o setor poderia captar recursos pela venda de tokens de recebíveis futuros lastreados no próprio imóvel objeto do financiamento.

A tokenização de dívidas e a emissão de valores mobiliários por meio da CVM 88 têm sido realizadas com sucesso por diversas empresas, demonstrando o potencial dessa abordagem. Isso porque, a tecnologia Blockchain, ao permitir a tokenização de ativos, facilita a rastreabilidade e a segurança das transações, tornando o processo mais eficiente e confiável.

Atenta aos novos movimentos do mercado, a CVM editou o Ofício Circular n.º 4/2023 (OC 4/23), trazendo algumas interpretações de sua área técnica (SSE) sobre a possibilidade de ofertas de tokens de recebíveis ou tokens renda fixa por meio de plataforma de crowdfunding.

A CVM editou, também, o Ofício Circular nº 6/2023 (OC 6/23), equiparando o patrimônio separado às regras das sociedades empresárias de pequeno porte. Ou seja, o patrimônio separado passou a ser considerado para aferição dos limites de capital social da CVM 88, o que permite, por exemplo, que construtoras e securitizadoras (ambas com capitais sociais milionários e sem possibilidade de enquadramento como sociedade de pequeno porte) possam emitir tokens para seus projetos, via patrimônio separado, distribuindo-os através de uma plataforma de crowdfunding.

Essa nova realidade trouxe consigo uma inevitável necessidade de alteração da CVM 88, para depurar o escopo da norma em dois grandes frontes: financiamento de startups (venture capital) e financiamento de projetos ligados a mercados mais sólidos.

Isso porque, quando trazemos a possibilidade de emissão de outros tipos de dívidas (não ligadas ao venture capital), por empresas mais consolidadas (via patrimônio separado, conforme OC 6/23), o risco da operação diminui, o que faz as limitações e amarras existentes na CVM 88 (pensadas para o venture capital) não só perdem sentido (por não terem razão de ser), como passam a atrapalhar o desenvolvimento do mercado, que perde liquidez e visibilidade.

As atuais restrições de captação de até R$ 15 milhões, por exemplo, são inadequadas para grandes empreendimentos imobiliários, que se mostram investimentos muito mais seguros.

Diante deste cenário, é recomendável a criação de uma nova norma específica para a oferta de dívidas diversas, enquanto a CVM 88 poderia continuar a regular exclusivamente a oferta de participação societária em startups. Esta nova norma poderia introduzir medidas como a separação das regras conforme o tipo de emissor (pequenas empresas versus SPEs ligadas a empresas consolidadas) e a flexibilização dos limites de captação.

Além disso, seria benéfico aumentar o teto limite de investimento individual com base nas regras de suitability e permitir a negociação de um mesmo ativo em mais de uma plataforma para aumentar a liquidez do mercado. A introdução de um mercado secundário mais livre, mas ainda regulamentado, poderia facilitar a saída dos investidores e estimular o desenvolvimento do mercado de crowdfunding no Brasil.

Essas mudanças seriam fundamentais para alinhar a regulamentação brasileira às necessidades do mercado, garantindo um ambiente regulatório robusto que fomente o crescimento sustentável do crowdfunding, tanto para a captação de participação societária quanto para a emissão de dívidas.

A importância do mercado de crédito no Brasil não pode ser subestimada. O acesso a crédito é importante para o desenvolvimento econômico, especialmente para pequenas e médias empresas que representam uma parcela significativa do PIB (produto interno bruto) e do emprego no país. Ao adaptar a regulação para refletir melhor as realidades do mercado de crédito e as inovações tecnológicas, o Brasil pode continuar a liderar na criação de oportunidades para startups e investidores, fortalecendo sua posição no cenário global de inovação e empreendedorismo.


Comentários (1)

tarciso

25 Outubro, 2024
gostei

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